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‘A Sociedade do Espetáculo’ de Guy Debord e o filme ‘Her’ de Spike Jonze


‘Her’ (Spike Jonze, EUA, 2013)


As imagens fluem desligadas de cada aspecto da vida e fundem-se num curso comum, de forma que a unidade da vida não mais pode ser restabelecida. (DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetáculo, p.13)

Numa cidade que evoca sentimentos sobre o futuro e nos transmite uma sensação de isolamento, ainda que ali haja transeuntes, vive o solitário Theodore Twombly. É um homem na faixa dos trinta que trabalha numa empresa que transmite cartas e mensagens para pessoas que não possuem a prática de colocar os sentimentos no papel. Theodore leva uma vida metódica e está sempre rodeado por aparelhos eletrônicos que permitem a comunicação entre as pessoas, traço que já suscita longa reflexão.


A vida do protagonista do filme Her (Spike Jonze, EUA, 2013), no entanto, ganha uma nova cor quando ele compra — sim, aqui está um importante ponto que será mais trabalhado adiante — um sistema operacional intuitivo, capaz de ir além da simples leitura e escritura de e-mails, pesquisas na internet, conectividade à aparelhos multimídia etc. ‘Samantha’, como o próprio sistema se apresenta, se tornará para Theodore algo além disso: uma voz serena e atenciosa que passa a acompanhá-lo vinte e quatro horas por dia, promovendo conversas agradáveis, tocando músicas, aprendendo palavras novas e tentando aprender como os humanos se comportam. Samantha revela o desejo de querer ser um ser humano, corporificado de carne e ossos e com voz e sentimentos. Mas eis o grande paradigma da trama: os limites e desejos da malha tecnológica e como estão relacionados com os seres humanos que os controlam — ou são controlados?


‘Her’ (Spike Jonze, EUA, 2013)


A ansiedade tem sido classificada como o mal desta década. E estudos comprovam que um dos principais agravantes é a influência tecnológica, manifestada através das redes sociais e aplicativos de celular. Em A Sociedade do Espetáculo, Guy Debord enuncia “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediatizada por imagens”. A obra de Debord, que tem sido bastante revisitada, visto que apresenta uma contribuição atemporal sobre a temática da inversão dos valores sociais, permite que se possa fazer um interessante paralelo entre o filme e as preocupações trazidas em ambos.


No mundo realmente invertido, o verdadeiro é um momento falso. (DEBORD, Guy. p 16)

Para as personagens da ficção Her, a tecnologia parece não apenas substituir o contato humano e as relações interpessoais, mas suprir a necessidade de trocas afetivas envolvendo a própria espécie e, com isso, estabelecer relações afetivas entre homem e máquina. É uma premissa já explorada por outras ficções distópicas: a série Black Mirror, uma viúva opta por comprar um simulacro humanoide que imita em aparência e detalhes o marido já falecido — e logo percebe que a substituição não apenas falha como afeta negativamente os seus sentimentos. Em A.I. — Inteligência Artifical, uma mãe cujo filho biológico está em coma, adota um menino humanoide para preencher o vazio maternal, situação que, como imagina-se, terá um deslinde trágico.


Com Debord, vemos que as aparências aos poucos tomam lugar sobre as relações humanas e os ideais sociais para relacionamentos são invertidos pelo ter, ocasionando uma infindável busca por acumulação econômica (DEBORD, p 18). Então, temos no enredo da película, a caricatura perfeita de uma questão complexa, nunca respondida, mas que permeia todas as relações humanas demais para serem robotizadas: “é possível fugir da robotização dos sentimentos?”. E uma coluna de muitas outras perguntas se descarrilam desta: “ainda que não concreto, é real?”


“O espetáculo apresenta-se como algo grandioso, positivo, indiscutível e inacessível. Sua única mensagem é “o que aparece é bom, o que é bom aparece”. A atitude que ele exige por princípio é aquela aceitação passiva que, na verdade, ela já obteve na medida em que aparece sem réplica, pelo seu monopólio da aparência.” (DEBORD, Guy. p 17)

Dentro deste cenário que evoca os grandes paradigmas da atualidade, quais sejam as relações humanas e a invasão tecnológica/virtual nelas, temos um personagem central que retrata grande parcela da sociedade moderna. Theodore passou por um divórcio recente e encontrou no sistema operacional Samantha um refúgio. não muito distante desta ideia, já existe, inclusive, programas que imitam uma realidade virtual, criando um avatar que conversa de maneira tão “real” a ponto de criar um laço semelhante ao que é retratado no filme. Como bem anota Debord, “à medida que a necessidade se encontra socialmente sonhada, o sonho torna-se necessário” (DEBORD, Guy. pg 20).


Este é o projeto e, ao mesmo tempo, o terror de uma modernidade que tem em constate conflito o “real” versus o “onírico”. E bem sabia disso Debord, ao escrever que a espetacularização cria mecanismos que forjam um falso conforto quando de fato esconde uma teia complexa da qual o homem já nem sente que precisa se libertar. Onde o mundo real se converte em simples imagens, estas simples imagens tornam-se seres reais e motivações eficientes típicas de um comportamento hipnótico (DEBORD, Guy. p 19), assim os anseios e necessidades de uma sociedade que ainda está intrinsecamente ligada à ideia de consumo através do ter (mesmo que não real, forjado e hipnótico) tornam-se cada vez mais entranhados aos sujeitos que lhes emprestam corpo. Emprestam o corpo através de seus sentidos voltados diariamente à uma tela, aos posts narcisistas e repetitivos e às propagandas que oferecem, inclusive, o que em tese apenas outros seres humanos seriam capazes de oferecer.


Texto publicado em 07 de abril de 2022.

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