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Da doçura e amargor das uvas

Me sentei pra escrever e trouxe comigo, como de costume, alguma coisa pra comer. Coloco num bowl (vulgo ‘cumbuquinha’ mesmo, é isso que você está pensando) algumas uvas e trago também um chocolate, sagrado pra mim. Então comecei a escrever, esboçando uma temática, rabiscando uma introdução. E enquanto isso, abrindo a embalagem do chocolate e puxando uma uva do ramo. Concentração total, que é pra inspiração vir com tudo, e ‘croc’. Foi um terrível e sonoro ‘croc’ de caroço de uva sendo esmagado na minha boca. Foi o meu fim.


Nos últimos tempos, com a pandemia, eu venho comprando frutas e verduras numa hortifruti perto da minha casa; renda familiar, contra o agronegócio, orgânicos, aquela peleja… Nessa hortifruti, descobri uvas DI-VI-NAS. Não tenho como explicar, foi esse um dos maiores prazeres dos últimos tempos. Elas são adoçadas numa medida ideal, textura macia, preço amigo. O próprio Dionísio me presenteou com essa dádiva e é como estou sobrevivendo.


Sem pensar muito, numa feira básica feita por minha mãe, foi trazida uma bendita caixa de uvas benitaka. Ocupado, não vi nem percebi a chegada daquelas uvas que NÃO eram as que tanto amo. Sentei ao computador e comecei a escrever. Pego uma uva e ‘croc’, um caroço terrível que me roubou inclusive a atenção. É… o ano é 2020 e as coisas não estão fáceis. Aquele era um sinal, ou melhor, uma advertência: acorde.

O costume e a facilidade nos torna tão confortáveis que esquecemos todo o resto. Acostumado às uvas sem caroço, a espécie tradicional (com todos os órgãos) que é a que eu sempre estive habituado, me visitava para dizer ‘acorda! uvas têm caroço tanto quanto você ossos’. E o clique na minha cabeça foi perceber que, assim como uvas (com ou sem caroço), existem passagens na vida com e sem caroços. E saberemos apenas na mordida, quando já tiverem saciado a vontade do cérebro para depois satisfazer a do estômago.


E foi um caroço amargo.


2020 tem tido tantos caroços amargos… A cada nova mordida é um caroço que nos explode travando a língua, cortando o clima. Schopenhauer entendia disso. Nietzsche também. Mas, ao que parece, abandonar o cacho de uvas inteiro por causa dos caroços não é boa coisa. Romantizei um pouco? Sim, por que não? Sorte a nossa que na uva o caroço é a menor parte. E mais: é dele que virão mais uvas. Saber mastigar um caroço que nos amarga a boca faz toda a diferença. E desenvolvemos logo uma técnica para não mastigá-los, ou evitá-los, jogo de cintura na boca para cuspi-los sem danos maiores ao paladar…


É preciso não perder o encanto pelas uvas, ainda que os caroços nos ameacem amargar tudo. E mais:


Guardemos os caroços não mastigados como insígnias, para uvas vindouras. Quem sabe?


Texto publicado em 26 de outubro de 2020.

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