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Foto do escritorGilles Diniz

Submergir é preciso

10.10/20.20


É uma data importante pra mim, aniversário de uma pessoa querida. Aquela com quem tenho estado ao lado durante toda a pandemia e que, por vezes, claro, nos estranhamos e os ânimos explodem, mas cultivamos um pacto silencioso de respeito e paz. Processos…


Neste isolamento, estive submerso. Passei um tempo num outro lado do mundo, o de dentro. Fases da pandemia. Lento processo. Mas foi o momento ideal para em entender como pessoa, como organismo, saber onde posso e quero pisar, saber o que me entristece e o que me deixa cheio de esperança, saber qual caminho seguir para ter a receita ideal, o desenho mais delicado ou o texto mais sincero. Escrever é sempre um caminho [sem volta?].


Certo dia, encontrei um caderno antigo, tempos de fundamental, e me impressionei com o que li. “Não gosto da expressão tiro no escuro, por que não beijo?”. Nossa. Ali reconheci que era eu, mas não o ‘eu’ de agora, e sim um ‘eu’ anterior e que gostei de reencontrar. Ainda não gosto muito da expressão, ainda que eu a utilize sem grandes preocupações. Alguém atirar no escuro me parece assustador. Ter colocado ‘beijo’ ali fez toda a diferença pra mim. Um tiro que encontra um alguém pode ser trágico, fatal. O beijo também pode ser fatal, mas de um jeito bom. Prefiro.


Nestes tempo, andei beijando as sombras. Lendo muitas coisas, ouvindo muitas coisas, escrevendo muitas coisas, desenhando, cozinhando, assistindo, plantando. Tudo isso me fez bem, um imenso bem. E eram beijos nas sombras, apostas incertas, tentativas, riscos muito corridos. Escrever algo me torna mais sincero comigo mesmo, porque vejo minhas palavras, sei o que digo e leio de volta. Escrever é o eco da alma.

Tempos difíceis estes, não só para quem é sonhador. Sobreviver nas adversidades agora é regra. Vi um filme em que uma menina da cidade descobre o amor no deserto australiano, num ambiente totalmente selvagem e perigoso, repleto de iguanas gigantes e com um sol escaldante. Há também muito amor nas adversidades. Debemos abrazar lo extraño.


É preciso submergir às vezes, porque estamos sempre envolto num ar tão poluído e repleto de sons que nos agridem. Embaixo d’água há outro som. Lá embaixo, a visão muda, refrata o sol, nos torna lentos, é outro tempo, outra dimensão. Até nisso a água nos ensina: calma. E isso aprendi com minha querida avó, que neste dia 10/10 faz aniversário. E calma não é não perder o controle. É aprender a voltar. Submergir para emergir. Isso me lembra uma coisa que fazia na infância: eu amava os óculos de natação. Sempre quis ser alguma coisa da água, sempre adorei água, embora minha rinite não. Ao colocar os óculos de natação e olhar debaixo d’água, num silêncio estranho, onde eu realmente estava mergulhado era incrível. Me sentia mais confortável sabendo o que havia embaixo de mim, no silêncio dos litros. E lembro também que, num passei do ensino médio, fomos à uma gruta, o Poço Azul. Incrível. Nos deram óculos de natação para enxergar o que havia no fundo da gruta e, assustador: uma árvore talvez centenária [ou mais que isso] estava lá, deitada no fundo, enorme, silenciosa, beatificada. Nunca vou esquecer essa imagem.


Submergir é tão necessário que, lembro de quando minha avó ia cuidar das unhas dos pés, colocava água numa bacia e deixava-os de molho por um tempo. Submersos. E parecia tão relaxante que eu pedia pra fazer o mesmo. Ainda que só o pé, submergir é tão necessário.


Texto publicado em 11 de outubro de 2020.

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