É do conhecimento de todos os isolados país afora que a a política da boa vizinhança tem se tornado o novo dharma da harmonia do bem viver. Isso porque a saúde mental dos nossos colegas de bairro (ou de prédio) parece estar, assim como a de todos nós, caminhando para um lugar comum chamado: caos. Instalou-se o caos com a chegada do vírus que veio perturbar não apenas o organismo corporal mas, como um todo, os demais organismos da sociedade: o familiar, o profissional, o religioso, o sexual e, claro, condominial.
Dada esta introdução dramática e séria, vamos aos fatos, nada sérios e muito dramáticos: a situação de ter que aturar as insanidades e desmedidas alheias através das paredes que tanto custaram a ser construídas para nos isolar do caos. Se você tem alguma crítica à propriedade privada, encontre aqui o deleite filosófico que dirá não existir muitos resquícios do ‘privado’ (polissemia permitida, pardon teóricos) nas casas de hoje. Não na minha rua.
Uma gama de cultura invade-nos os aposentos sem permissão e sem aviso prévio, embalados pelo techno music de uma só batida ou pelo sertanejo de uma só voz. Numa rápida pesquisa, descobri existirem mais duplas sertanejas do que eu acreditava ouvir. Comecinho da noite, os idosos preparam seus mingaus, as crianças tomam seus banhos, os adultos preparam um filme, cada família em seu abrigo particular. Tudo parece ir bem dentro do padrão nacional de boas maneiras e dentro do respeito mútuo que devemos preservar na vizinhança. De repente, uma voz híbrida de gralha com cantora de ópera eleva-se. Sabemos de onde ela vem, sim, sempre sabemos, porque aquele costume se repete todas as quintas. Vozes outras, humanas espero, revelam amigos que abrem uma cervejinha gelada e preparam petiscos. E então é dado início ao show: a introdução da dupla sertaneja ou do cantor de forró na televisão traz o conceito ‘traída mas feliz’ (se for uma artista feminina) ou ‘álcool, ostentação e sexo’ (o carpe diem dos artistas masculinos) — paradoxal com tons de autodesenvolvimento — e os convivas gritam ensandecidos erguendo os copinhos. Estão em um show, vizinho a minha casa, filmando em seus celulares a felicidade que só a alienação pode proporcionar. E em coro cantam as mais lindas (porque são lindas, e não posso jamais dizer que se tratam de músicas ruins, sou eclético) letras e melodias. E dentro desta uma hora de live, e para todos os vizinhos ouvirem, a nossa querida anfitriã e seus convivas esquecem o mundo, política (assunto tabu para os artistas que admiram), pandemia (sim, pois uma famosa marca de cerveja é quem patrocina o evento) e bom senso (alguém ainda se importa com vizinhos neste século?).
Preparo-me para uma leitura qualquer, um artigo de revista sobre a situação do país, um romance, uma resenha. Ledo engano. Um riff de guitarra acompanhado de uma sanfona possuída me perfura o tímpano, e voa a gralha que canta sobre ‘ser traída’. Reflitamos… as letras trazem as temáticas que envolvem um historinha de uma mulher que fora traída mas ainda ama o seu ex. Ela o flagrou com outra, mas ele não irá se desculpar, afinal, está apenas exercendo o seu papel social. No bar, a Arcádia dos grandes poetas do gênero, reflexões são trazidas junto com a cerveja, e então o eu lírico (o personagem traído, porque muda-se de perspectiva dependendo do público) é tomado por um espírito de independência e autonomia sentimental invejável: ele/ela não quer mais sofrer, e com aquela música virá o expurgo de todos os males.
Demorei um tempo até constatar que a tal vizinha, a dona da festa, a dona da rua, casada, recatada e do lar, dentro do “padrão de Deus” (fazendo menção às sábias palavras de uma célebre pastora), vez ou outra, grita acompanhando a música: ‘é isso aí!’, ‘homem pra quê?’, ‘não caio mais nessa não’. Imagino em qual cômodo o marido e o filho dela estão e como reagem ao ouvir esta palestra de coaching de autodesenvolvimento emocional.
E, por vezes, a sala também é palco e ela é abriga a persona da própria dupla sertaneja, investindo nos falsetes e agudos ou fazendo segundas vozes tenores e graves. Nos intervalos, comentário e gritos são ouvidos daqui de casa, mesmo que eu esteja em meu quarto trancado: ‘Eita mundo véi’ ou ‘irrruuu’. Detalhe: nas quintas-feiras. Nos outros dias temos outras personas e outras performances. Às terças, temos o eletro-techno-trance-nem-sei-mais-que-nome-se-dá, porque é quando a vizinha faz seu treino, afinal, é preciso manter o ‘corpitcho’ e eliminar os excessos do final de semana regado a cerveja. E então, por volta das sete da noite, socos e golpes num saco de areia abrem a noite. A música, sempre a mesma, de um mesmo artista que sequer canta, embala o treino pesado. ‘Pow’, ‘Pish’, ‘Pá’, e os vizinhos que guardem suas opiniões. São apenas sete da noite, mas esqueça seus afazeres que envolvam concentração, porque a tal vizinha precisa de música em alto e bom som para treinar.
Texto publicado em 30 de setembro de 2020.
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